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Paula Raccanello Storto, advogada e pesquisadora da área de terceiro setor e defesa de direitos, conversa com o Setor3 sobre o controle e monitoramento do governo a OSCs.

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“O que precisa ser controlado é o governo. Não as organizações da sociedade civil”, enfatiza a advogada e pesquisadora. (crédito da imagem: divulgação)

 

 

 

 

No início do ano o novo governo do presidente Jair Bolsonaro (PSL) criou uma medida provisória nº 870/2019 para monitorar e coordenar organizações da sociedade civil e organismos internacionais. Esta ação fica sob responsabilidade da Secretaria de Governo com papel de supervisionar, coordenar, monitorar e acompanhar as ações desses atores no país.

Para entender como está esse debate e o cenário para as organizações da sociedade civil (OSCs), o Setor3 conversou com Paula Raccanello Storto, advogada e sócia de Szazi, Bechara, Storto, Rosa e Figueirêdo Lopes Advogado, parceiro do Prêmio Empreendedor Social. Atua ainda como pesquisadora do Núcleo de Estudos Avançados em Terceiro Setor, da Pontifícia Universidade Cartólica de São Paulo (PUC-SP), professora dos cursos de desenvolvimento social do Senac São Paulo e da PUC-SP. Leia abaixo a entrevista:

Portal Setor3 – Como avalia a situação atual das organizações após falas no início do ano do atual governo?

Paula Raccanello Storto – Desde o início da campanha do atual governo, havia um clima de desconfiança e negação ao universo e à importância do trabalho das ONGs. Tanto o terceiro setor quanto outros espaços democráticos da nossa sociedade, que o governo parece entender como territórios de esquerda, tem sido objeto de medidas que visam diminuir seu espaço de atuação na sociedade. Nós sabemos que as organizações da sociedade civil tem um papel muito importante, por influenciar e trazer a tona questões fundamentais para melhoria da nossa democracia.

Portal Setor3 – Na verdade, você observa que as organizações da sociedade civil incomodam setores específicos da atual gestão? Elas incomodam por representar muitas vozes?

PRS – O universo de organizações é muito amplo, no Brasil, são demais de 800 mil entidades que têm as mais diversas causas e bandeiras. Assim, há organizações que apoiam a ideologia do atual governo. Mas há também as que incomodam. Esses atores têm uma fala direta com as populações e há décadas no Brasil atual construindo política pública com as pessoas. A estratégia de diminuir a representatividade desses grupos como representantes legítimos de determinados interesses tende a reduzir a capilaridade entre o Estado e a vida dessas pessoas. Dessa forma, a decisão de controlar e monitorar as atividades das organizações da própria Presidência da República traduz um tratamento diferenciado, uma estigmatização das organizações não governamentais, como se elas precisassem ser vigiadas, o que não é verdade. E como seria feito esse controle e monitoramento das organizações e até dos organismos internacionais? Criar este tipo de estrutura na Presidência da República é exercício de centralização administrativa e de aumento da burocracia estatal, que vai na direção oposta da bandeira deste governo, que propaga a diminuição do Estado.

Portal Setor3 – Esse questionamento vai impactar de certa forma o debate democrático? Você pode falar um pouco mais sobre isso?

PRS – Existe uma narrativa muito clara de alguns segmentos e interlocutores do governo Bolsonaro, no sentido de estimular a desconfiança da população em importantes instituições da nossa democracia, da nossa sociedade. As organizações da sociedade civil são parte deste universo, que é composto pela imprensa livre e plural, pelas organizações culturais, universidades públicas, pela liberdade de cátedra. Outra face desta mesma moeda é a diminuição da pluralidade, da possibilidade de termos diferentes pontos de vista na construção das políticas de Estado. O respeito à diversidade e às minorias não é só um Direito Fundamental assegurado na Constituição, mas também uma boa prática na formulação das políticas, prevenindo erros, e evitando a necessidade de tantos recuos, que aliás tem sido uma marca deste governo. A participação social por meio de organizações da sociedade civil está em todas as áreas – desde sociais até as econômicas. A democracia é isso. Nós sabemos que o governo não tem monopólio do saber. Ele lida com a sociedade para saber o que é bom para todos. Então, eu observo essa narrativa enviesada com relação às organizações da sociedade civil, aos movimentos sociais como parte de um movimento mais amplo. Acho importante pontuar também que mundo mudou muito em pouco tempo e essa narrativa conservadora que tem encontrado espaço em diferentes países, canaliza, em alguma medida, um desejo profundo de uma parcela da nossa sociedade de que as coisas voltem a ser mais simples, mais fáceis de lidar. A internet e a mudança do papel da mulher na sociedade impuseram alterações drásticas no dia a dia das pessoas. Me chamou a atenção uma notícia durante a Copa do Mundo de 2016, mostrando que parte significativa dos atletas da seleção foram criados por famílias sem pai, somente por suas mães e avós, que os incentivaram a jogar bola e a se profissionalizar. Atualmente no Brasil quase 40% das famílias são formadas pelas mães e seus filhos, determinando que o conceito de família e as políticas públicas para mulheres dialoguem com esta nova realidade, que não é só uma luta feminista, mas de toda nossa sociedade. Este debate não existia há 50 anos. As questões de gênero vão muito além do debate sobre as mulheres, os gays, as lésbicas ou transgêneros, uma vez que transcende a questão do sexo biológico. Não tem jeito, estas agendas estão colocadas na sociedade moderna, em todo o mundo, não é uma jabuticaba brasileira. A campanha de Bolsonaro teve sucesso em dar voz a uma parcela da sociedade que tem uma incompreensão com relação a este cenário e que se sentia mais confortável num mundo em que as coisas eram mais simples, em que não tinham tantas vozes. Há poucos anos não era dada voz para toda essa diversidade: indígenas, caiçaras, quilombolas, ecologistas, ativistas, movimento dos atingidos por barragens, estudiosos, para “atrapalhar” as grandes obras, o desenvolvimento nacional. Ocorre que essa visão é da década de 1950/1960, de um tempo no qual preservação ambiental e desenvolvimento econômico e social eram questões opostas, contraditórias. A noção de desenvolvimento sustentável se consolida desde a década de 1960, com a criação do Clube de Roma em 1966, ocasião em que cientistas, educadores e industriais concordaram sobre a inviabilidade do modelo econômico, então, vigente, diante da evidente limitação dos recursos ambientais disponíveis. No Brasil de hoje, não é decisão deste ou daquele governo que o modelo de desenvolvimento nacional deve preservar o meio ambiente e cuidar das populações que o habitam, já que é um comando constitucional.

Nossa Constituição Federal assegura também que, para fechar uma organização social, é necessária decisão judicial transitada em julgado. Ou seja, é uma proteção dessa liberdade de associação, participação e expressão, que não pode ser maculada pelo Poder Executivo e nem por decisão de um único juiz de primeiro grau. A sociedade civil está organizada para defender e, na medida do possível, avançar rumo à criação de ambientes menos limitantes à sua atuação. Há importantes redes na área que militam, monitoram e acompanham esse desenrolar da história.

Entre elas, eu cito a Plataforma por um novo Marco Regulatório para as Organizações da Sociedade Civil; a Frente pela Democracia e Direitos Humanos, o Projeto Sustentabilidade Econômica das OSC, que cria e apresenta alternativas para a melhoria da legislação relativa à sustentabilidade financeira das organizações.

Estes e outros grupos já têm articulações e representantes no Congresso Nacional, inclusive para criar uma Frente Parlamentar em Defesa das Organizações da Sociedade Civil, justamente para ter essa inteligência de reunir e identificar projetos de lei que podem significar avanços ou retrocessos neste tema. Acredito muito neste tipo de controle e incidência da sociedade. A Plataforma MROSC teve um papel importante até na mudança e na organização de relacionamento, envolvendo governo federal, tendo mantido interlocução constante no processo de aprovação da Lei 13.019/2014 – conhecida como MROSC (Marco Regulatório das Organizações da Sociedade Civil), uma lei que reúne mecanismos de qualificação e controle dessas parcerias feita para facilitar o processo. Essa agenda foi feita para que a decisão do gestor público (secretário e/ou ministro) tenha mais legalidade, seja menos personalista. Agora com essa nova lei, é preciso ter diagnóstico com justificativa, um processo de seleção adequado, republicano, que é o que defendemos.

Portal Setor3 – Quais outra ferramenta as organizações podem usar e usufruir para deixar mais claro o trabalho delas?

PRS – Eu, pessoalmente, tenho muita clareza do papel delas e a convicção de que as pessoas, por mais que não se vejam como militantes de organizações, estão participando de alguma coisa, como associação de pais, que realizam torneios esportivos, promovem os direitos de moradia e de vizinhança, a defesa do meio ambiente e dos consumidores, ou mesmo doando tempo e dinheiro para instituições de caridade. Em geral, as organizações da sociedade civil são verdadeiros espaços de conexões entre as pessoas, ações de interesse público com engajamento. Quem participa deste tipo de ação pratica a construção coletiva e amplia seus círculos de relações de confiança para além de amigos e familiares, o que é um excelente exercício de empatia e democracia. Reconhecer e lidar com o problema do outro. Eu acho que é um desafio justamente mostrar para a sociedade em geral a importância desse trabalho não reside apenas no resultado final apresentado, mas nas relações e laços cidadãos que nascem neste processo de construção, de treino, de estabelecimento de vínculos de pertencimento entre pessoas, direitos e territórios. Para conseguir dar mais clareza à sociedade do importante papel das OSC é necessária uma boa comunicação, com identificação da ação de organizações cujos trabalhos foram importantes para a correção de muitas coisas e até demanda de novos direitos. Também é importante que a sociedade tenha conhecimento das inúmeras iniciativas que nasceram no seio das OSC e que hoje nos ajudam a ter melhores instrumentos de controle da atuação dos governantes – eleitos para representar nossos interesses. Muitas denúncias de mau uso de dinheiro público são feitas e levadas adiante por OSC. O advogado Mauri Cruz, diretor da Abong, publicou recentemente um texto muito claro chamando a atenção para este fato, de que os sinais estão trocados, pois é o governo eleito que deve prestar contas e ser fiscalizados pela sociedade. Outro dia assisti uma série na NetFlix muito interessante chamada Na Rota do Dinheiro Sujo, que é formada por vários pequenos documentários sobre casos de fraude e corrupção de grande repercussão. O primeiro episódio mostra o famoso caso da adulteração dos medidores de análises de emissão de gases CO2 pela Volkswagen na Europa. Este assunto teve destaque na mídia internacional, mas o documentário mostra que a denúncia sobre a inconsistência dos dados apresentados pela VW teve origem e foi liderada por uma organização ambientalista alemã, muito combativa e técnica, que checava dados, fazia estudos independentes, comparações e pressionava os órgãos de fiscalização para buscar esclarecimentos e pedir explicações. Por que coloco isso? Porque o documentário mostra que nem as concorrentes do setor automobilístico, nem os bem equipados órgãos públicos de controle europeus sozinhos teriam detectado a fraude. A partir daí lança a pergunta: será que somente a Volkswagen faz isso? A resposta fica no ar e é muito bom saber que existem pessoas e instituições comprometidas com a defesa da saúde das pessoas, acima dos interesses de governos e de grupos empresariais transnacionais. Foi o trabalho dessa OSC alemã que pressionou os órgãos ambientais e após alguns anos de reuniões, estudos e pareceres técnicos ficou claro que havia algo errado ali. No Brasil, um caso recente foi o trágico crime ambiental do rompimento da barragem da mineradora Vale no município de Brumadinho (MG). As apurações até agora apontam para a fragilidade na implantação dos instrumentos de fiscalização pública e da própria companhia. Nesse contexto, é muito simbólica a notícia de que numa reunião que ocorreu um mês antes do rompimento da barragem, o Conselho Estadual de Meio Ambiente foi favorável, por oito votos a um, à concessão de novas licenças ambientais para ampliar a operação da empresa Vale na referida barragem. O único voto contrário, vencido, foi da única organização ambientalista que integrava o Conselho e que já vinha denunciando o risco de operar aquela barragem aos órgãos de fiscalização. Ou seja, precisamos ouvir mais e dar mais valor ao importante papel desempenhado pelas organizações da nossa sociedade. Esse é o tipo de atuação que me parece fundamental mostrar para a sociedade, deixando claro que essas organizações contribuem muito e são essenciais para que tenhamos melhores padrões de desenvolvimento.

Portal Setor3 – Você quer pontuar algo que acho importante e não perguntei?

PRS – É importante ressaltar que as organizações e movimentos estão em constante construção com outros importantes setores da sociedade, como as organizações de classe e as universidades. Nesse sentido, vale destacar os trabalhos importantes que vem sendo realizados pelo Núcleo sobre Governo e Sociedade do Centro de Pesquisas Jurídicas Aplicadas da FGV Direito SP e o Núcleo de Avançados em Terceiro Setor (NEATS), da PUC-SP. Merece destaque também o lançamento da Comissão Arns, na Faculdade de Direito da USP, envolvendo várias personalidades do mundo jurídico, pessoas e organizações defensoras dos diretos humanos. Organizações internacionais de peso também estão acompanhando o desenrolar desse novo cenário no Brasil. ICNL – Internacional Center for Not for Profit Law, tradicional instituição que luta pela ampliação do espaço cívico global, também já manifestou sua preocupação com a situação brasileira. Eles têm um projeto chamado Freedom Monitor, em que há relatórios sobre o ambiente cívico em uma série de países, incluindo o Brasil. Recentemente, no dia 21 de fevereiro, foi realizado um encontro na Fundação Getúlio Vargas, no qual esteve um representante do governo federal para apresentar a nova arquitetura institucional de relacionamento do governo com organização da sociedade civil. Ele apresentou um organograma dessa área na Secretaria de Governo na Presidência da República e disse que ainda não existe um corpo técnico definido nem uma proposta clara de atuação, pois o plano de ação ainda vai ser desenhado e será feito um diagnóstico. Enfim, é uma informação bem vaga, que não aponta com clareza uma motivação adequada para a criação desse departamento que pelo teor da MP 870, teria a preocupante função de monitorar as ONGs e os organismos internacionais, que, conforme Nota Técnica publicada pela Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão do Ministério Público Federal, é claramente contrário aos princípios democráticos e à nossa Constituição.

Interessados nas formações da área de desenvolvimento social do Senac São Paulo, podem acessar aqui:

Desenvolvimento Social
Gestão de Projetos Sociais no Território 
Responsabilidade Social Empresarial e Sustentabilidade 
Projetos Sociais e Políticas Públicas 

Publicado em: Advogada conversa sobre a situação das OSCs no atual governo

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