Brasília, 12 de abril de 2021.
O presente documento tem por propósito trazer importantes observações acerca das fragilidades do Projeto de Lei nº 4.953/2016, apresentado pelo Deputado Federal Sr. Subtenente Gonzaga do PDT de Minas Gerais. Comunica sua ementa que o Projeto de Lei busca tornar obrigatório que as Organizações da Sociedade Civil (OSCs) declararem, anualmente, os recursos recebidos do exterior ou de entidades ou governos estrangeiros, mesmo que em moeda nacional.
Com os objetivos de permanente aprimoramento do arcabouço normativo e de fortalecimento institucional da atuação das OSCs, apresentamos abaixo a sistematização de argumentos que demonstram que todos os recursos nacionais e internacionais recebidos pelas OSC já são objeto de rigoroso controle por parte da Receita Federal e do Banco Central, nas mesmas bases que todas as demais pessoas jurídicas brasileiras. Esse fato torna o projeto de lei desnecessário, por redundante, e inconstitucional, por violar o princípio da impessoalidade que deve reger as relações da Administração Pública com particulares e os princípios da isonomia e da não interferência estatal no funcionamento de associações, forma jurídica adotada por mais de 90% das OSC no Brasil.
Antes, no entanto, registramos algumas informações sobre quem somos, nossa história na construção da agenda do MROSC, nossa atuação regionalizada e a importância da garantia de um bom ambiente de atuação das OSCs no Brasil.
I – SOBRE A PLATAFORMA MROSC
A Plataforma por um Novo Marco Regulatório das Organizações da Sociedade Civil (Plataforma MROSC)1 é uma articulação nacional representativa de diversos organizações da sociedade civil dedicadas a várias causas de interesse público, composta por 1643 organizações signatárias e 8 plataformas estaduais, criada em 2010 com a finalidade de definir uma agenda comum de incidência da sociedade civil brasileira, em prol da melhoria de seu ambiente de atuação, seja pela regulação, seja por produção e apropriação de conhecimentos, cuja rede indireta alcança mais de 50 mil entidades. A Plataforma destaca o papel das OSCs como patrimônio social brasileiro e pilar de nossa democracia.
Os principais compromissos da Plataforma MROSC são com as causas de interesse público; a consolidação da democracia; a pluralidade na ampliação da participação democrática por meio da participação cidadã; o aprimoramento, melhoria e intensificação da qualidade da participação das OSCs nos processos de mobilização da cidadania para causas de interesse público; e com a adoção de práticas que permitam uma melhor gestão dos recursos manejados pelas OSCs, aperfeiçoando sua regulação e transparência.
Tendo participado ativamente da construção da Lei nº 13.019/2014, que entrou em vigor em janeiro de 2016 para a União, o Distrito Federal e os Estados, e em janeiro de 2017 para os Municípios, a Plataforma MROSC está hoje muito envolvida no processo de regulamentação e implementação nos entes subnacionais para que o façam em acordo com os princípios e diretrizes de valorização, autonomia e participação das OSCs, trazidos pelo MROSC. A norma traz uma mudança de paradigma nas relações de parceria, que requer um novo olhar sobre essas relações entre a Administração Pública e a sociedade civil. A produção e divulgação de conhecimento sobre os temas da agenda e da implementação da Lei nº 13.019/2014, a partir de uma perspectiva mais ampla e de valorização das OSCs, com a construção de um ambiente mais favorável à sua atuação e à participação social, são características da atuação da Plataforma nesta trilha percorrida nos últimos dez anos.
A experiência da Plataforma e a diversidade das OSCs traduzem e reafirmam o pressuposto de que participação significa ampliação da democracia e redução das desigualdades de gênero e raça existentes no país, relacionando-se diretamente à promoção do desenvolvimento sustentável e do acesso à justiça e à construção de instituições eficazes para todas e todos. OSCs fortes fortalecem a democracia e proporcionam maior pluralidade e melhores padrões de desenvolvimento, com manutenção das conquistas sociais, econômicas e políticas alcançadas pelo Brasil desde a democratização.
II – ANÁLISE
De início, importante pontuar que o PL nº 4.953 de 2016 tornou-se anacrônico, eis que viola os princípios norteadores do Marco Regulatório das Organizações da Sociedade Civil (Lei Federal n° 13.109/2014, doravante “MROSC”), que tem como principal característica a mudança da postura do Estado sobre a sociedade civil e sua atuação cidadã e de forte impacto social.
Com a promulgação do MROSC, a relação jurídica de entidades sem fins lucrativos com o poder público passou a ser pautada pelo reconhecimento da importância e do protagonismo das OSCs na garantia de direitos da população brasileira e o Estado passou a atuar junto das OSCs como parceiro, fortalecendo as entidades para o cumprimento de suas finalidades públicas, em detrimento de uma atuação norteada pelas lógicas da vigilância e da fiscalização.
Essa dinâmica incorporada pelo MROSC é uma tendência internacional, pois o valor da participação da sociedade civil e da construção de espaços cívicos é inquestionável para o fortalecimento democrático, conforme defendido por organismos internacionais atentos a promover e defender espaços cívicos, interativos entre Estados e Sociedade Civil, a exemplo da Relatoria Especial para os direitos de liberdade de reunião pacífica e de associação da ONU e do Sistema Interamericano de Direitos Humanos.
Contudo, sabemos que não é de se ignorar a preocupação mundial referente à lavagem de dinheiro. Nesse aspecto, o GAFI – Grupo de Ação Financeira Internacional contra a Lavagem de Dinheiro e o Financiamento do Terrorismo, localizado no âmbito da OCDE, dispõe de recomendação específica para OSCs, segundo a qual os governos devem envidar esforços para a compreensão dos riscos da lavagem de dinheiro que os afetam e adaptarem seus sistemas de prevenção e combate à lavagem de dinheiro e financiamento ao terrorismo, buscando tratar a natureza desses riscos, com atenção aos graus maiores ou menores a partir de situação concreta, com ações diferenciadas de acordo com essa escala. Esses controles, contudo, não devem ser mais rigorosos que aqueles adotados para as empresas. Já há nesse sentido, controles no sistema bancário suficientes para garantir que os recursos recebidos do exterior, de todas as pessoas jurídicas, tenham lastro e legitimidade na sua entrada no país, a partir da apresentação de contratos ou projetos e de documentos fiscais hábeis correspondentes.
Logo, além de ferir a lógica adotada pelo MROSC ao impor a vigilância e a fiscalização das OSCs como premissa, do ponto de vista conceitual e prático, esse PL não atende às recomendações dos organismos internacionais que estipulam que medidas relativas às OSCs devem ser baseadas em evidências e situações concretas que, em nenhum momento, demanda controle mais rigoroso que aquele dado às empresas.
Além disso, a matéria do PL desrespeita múltiplas vezes a Constituição Federal.
Primeiro, por violar a liberdade constitucional de associação e de prevenção da interferência estatal no funcionamento de associações prevista no artigo 5º, XVIII da Constituição Federal2.
Em segundo lugar, viola o princípio da impessoalidade nas relações do Estado com particulares, previsto no artigo 37 da Constituição ao burocratizar excessivamente e impor obrigação de cunho discriminatório e desproporcional ao obrigar às OSCs a prestarem contas de recursos privados recebidos do exterior.
Em terceiro lugar, afronta o princípio de tratamento isonômico das pessoas jurídicas pela lei. De igual forma, viola o comando do parágrafo quarto do art. 174 da CF que estabelece que a Lei deve estimular o cooperativismo e o associativismo.
Em quarto lugar, ao demandar a prestação de contas ao Ministério da Defesa, que congrega as Forças Armadas, viola o papel constitucional dessas forças, previsto no artigo 142 da Constituição.
Reitere-se que além de todas as violações e problemas identificados, o PL é redundante, burocrático e oneroso, sendo que em nada inova com relação à legislação já existente.
Convém lembrar além de toda a robustez da legislação referente ao recebimento de recursos públicos, todas as OSCs já têm a obrigação de prestar contas de seus recursos recebidos, seja nacional ou seja internacionalmente, conforme ampla regulamentação, inclusive do Banco Central.
São os órgãos fazendários que têm atribuição de realizar esse tipo de fiscalização, e caso haja qualquer indício de irregularidade o Coaf ou qualquer outro órgão investigativo tem competência formal para pedir autorização para acessar as contas e avaliar qualquer suspeita de irregularidade, seja lidando com OSCs ou com empresas.
Registre-se que o sistema funciona com obrigação legal vigente de que todos os profissionais de contabilidade, conforme Resolução CFC n.º 1.530/2017, comuniquem ao Coaf a ocorrência ou não ocorrência de eventos suspeitos de lavagem de dinheiro ou financiamento ao terrorismo, sob pena de responsabilização do profissional ou organização contábil a que esteja vinculado3.
Manter a escrituração de suas receitas e despesas em livros revestidos de formalidades capazes de assegurar sua exatidão já é obrigação das organizações conforme previsto no Código Tributário Nacional.
As entidades também prestam informações anuais por meio da RAIS, Relatório Anual de Informações Sociais, entregue ao Ministério da Economia e que qualquer operação de câmbio precisa ser autorizada junto ao banco, com os documentos cabíveis, já regulamentados por resoluções do BACEN e acompanhadas por instituições financeiras.
Adicionalmente, várias organizações, mesmo que não tenham relação com o Poder Público, são qualificadas como OSCIPs e assim, além de prestar contas à receita, também prestam contas ao Ministério da Justiça e são obrigadas a deixar público em seus sítios eletrônicos todos os relatórios de atividades e financeiros. E aquelas que tem qualificação de CEBAS – Certiticado de Entidade Beneficente de Assistencia Social, são submetidas a rigososo controles dos Ministérios das atividades que desenvolvem, qual seja, da Saúde, da Educação e da Cidadania (Assistência Social). E ainda as OSC constituidas como fundação são ordinariamente fiscalizadas pelo Ministério Público, conforme estabelece o Código Civil.
Ademais, relevante pontuar que Lei Federal nº 13.204, de 14 de dezembro de 2015, que alterou algumas disposições do MROSC dentre outros, ao revogar a Lei n° 91/1935 extinguiu o título de Utilidade Pública Federal (UPF), o que gerou também a extinção do Cadastro Nacional de Entidades Sociais, cuja bases de dados foi para o Mapa das Organizações da Sociedade Civil, plataforma pública georreferenciada gerida pelo IPEA. O comunicado da Secretaria Nacional de Justiça do Ministério da Justiça, de 14 de abril de 2016, reforça a necessária desburocratização da interação Estado e sociedade4.
Neste sentido, este PL fere também a Lei nº 13.276/2018, em cujo artigo primeiro já se institui a seguinte obrigação a ser observada pelo Estado brasileiro: “Art. 1º Esta Lei racionaliza atos e procedimentos administrativos dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios mediante a supressão ou a simplificação de formalidades ou exigências desnecessárias ou superpostas, cujo custo econômico ou social, tanto para o erário como para o cidadão, seja superior ao eventual risco de fraude”.
Assim, resta demonstrado que a legislação existente já é robusta o suficiente, obrigando as organizações em diversas instâncias a prestarem contas de seus financiamentos, sem ferir sua autonomia privada. Caso haja necessidade, a legislação existente também prevê controles posteriores, de maneira suplementar, quando a atividade da entidade ou da empresa possa prejudicar a própria coletividade, a partir dos casos concretos e evidências.
III – CONCLUSÃO
Diante do exposto, é claro que já está consolidada e estruturada uma institucionalidade de Estado designada para vigilância e fiscalização de atividades de organizações da sociedade civil e que a matéria que versa o PL 4.953/2016 tem muito potencial de gerar efeitos e consequências burocratizantes e improdutivos na relação democrática entre Estado e sociedade. Esses fatos justificam a rejeição do Projeto de Lei nº 4.953, de 2016, pela Câmara dos Deputados, pois, como demonstrado:
i) viola os princípios e regras da Lei 13.019/2014;
ii) viola a liberdade constitucional de associação e de não interferência estatal no funcionamento de associações prevista no artigo 5º, XVIII da Constituição Federal;
iii) viola o princípio da impessoalidade nas relações do Estado com particulares, previsto no artigo 37 da Constituição;
iv) viola o princípio da isonomia legislativa no tratamento dos particulares e o comando constitucional do parágrafo quarto do art. 174 da CF que estabelece que a Lei deve estimular o cooperativismo e o associativismo;
v) viola o papel constitucional das Forças Armadas, ao demandar a prestação de contas ao Ministério da Defesa, conforme previsto no artigo 142 da Constituição;
vi) fere as diretrizes de racionalização de procedimentos administrativos da Lei nº 13.176/2018;
vii) não atende à recomendações internacionais, especialmente do GAFI, no que se refere a medidas que envolvam OSCs.
A Plataforma MROSC é, portanto, totalmente contrária à sua aprovação e insta V.Exas a rejeitar o referido projeto de lei.
A oportunidade de participar de forma direta, colaborando com o a defesa do marco regulatório das OSCs faz parte do propósito da Plataforma MROSC. No atual momento, se faz urgente garantir o regular funcionamento das OSCs, opondo-se à tentativas de criminalização do terceiro setor e à burocratização excessiva, permitindo a continuidade do atendimento de relevância pública que essas entidades prestam à população.
Manifestamos a nossa disponibilidade para contribuir com outros debates e encaminhamentos no campo social e no Parlamento, que possam fortalecer e criar novas condições para a atuação da Sociedade Civil na construção da Democracia, defesa dos direitos e superação da desigualdade.
Plataforma MROSC
Comitê Facilitador
Para download da Nota Técnica, clique AQUI
[1] Mais informações no site da Plataforma MROSC www.plataformaosc.org.br