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Por Angelica Tomassini e Nívea Martins 

A ação para o fortalecimento do protagonismo das mulheres, sobretudo nos espaços políticos de gestão social e do direito, é um dos pontos norteadores da Plataforma MROSC. Através de rodas de conversa, encontros estaduais e nacionais voltados para as mulheres, a Plataforma vem debatendo e convidando as mulheres do campo e da cidade a se apropriarem dos espaços e discussões na luta por um novo Marco Regulatório das Organizações da Sociedade Civil.

Para evidenciar as diversas mulheres, suas histórias de luta e militância, envolvidas hoje na Plataforma e/ou nas organizações signatárias, lançamos a campanha Mulheres que Inspiram, uma série de entrevistas para conhecermos essas  lideranças que estão em espaços de destaque ou na base e que diariamente lutam por seus direitos.

                      Mulheres que Inspiram: Eliana Rolemberg

 

Eliana Rolemberg é socióloga, representante da Coordenadoria Ecumênica de Serviço (CESE) pelo segmento Defesa de Direitos Humanos no Comitê Facilitador da Plataforma MROSC e Vice-Presidente do CONFOCO/BA.

Nascida em Jundiaí, interior de São Paulo, Eliana conta que inicialmente sua paixão era a música; piano e violão, mas seu forte interesse pela sociologia, ainda no colégio, a levou, aos 17 anos, a abandonar sua carreira de musicista para estudar sociologia na PUC -SP,  e a se envolver nas lutas estudantis e, mais tarde, para toda uma vida dedicada à luta pela defesa dos direitos humanos.

Eliana não perdeu seu amor pela cultura, participando da criação do Teatro da Universidade Católica de São Paulo (TUCA), onde também ajudou na produção e desenvolvimento da peça “Morte e Vida Severina”, em que teve a oportunidade de conhecer Chico Buarque. Na militância, mostrou sua bravura e resistência, lutando pela democracia durante a ditadura, pelos direitos humanos e organizações da sociedade civil.

Pergunta: Como surgiu sua luta por direitos humanos, seu desejo de lutar junto aos movimentos sociais, organizações?

Eliana: Com minha paixão pela sociologia, me inscrevi na PUC – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e lá teve início meu interesse pelas lutas realizadas pelos movimentos sociais.

Comecei a participar de lutas importantes da época, como a Greve por um terço, com objetivo de reivindicar um terço de representação estudantil nos colegiados das universidades, pois não queríamos que tudo fosse resolvido somente pelas direções. O sentimento de mudar as coisas, na época, fez com que enxergássemos a necessidade de ocupar a faculdade e enfrentar correntes contrárias. 

Participei, também, da Juventude Universitária Católica, a qual me deu embasamento em termos de visão do social, visão política e dos direitos humanos.

Foto: Nair Benedicto (1940, SP) -Memorial da Resistência

Eu já estava me apaixonando pelo Nordeste e, convivendo com meus companheiros e companheiras, fui percebendo que as desigualdades sociais estavam muito mais nítidas no NE do que em São Paulo, por exemplo. E foi assim que meu sonho de ir à região se tornou cada dia mais forte, até que, em 1964, chegou a ditadura. Tivemos que esconder qualquer material que falasse de política, de cultura, tudo  era razão de perseguição e ameaças. Muita gente foi presa, torturada, material destruído, lideranças assassinadas e grandes mestres partiram para o exílio. Pouco antes de me formar fui selecionada para um trabalho que me enviaria ao Nordeste, então fui realizar meu sonho. 

Eu estava muito consciente das injustiças, não só no meio estudantil, mas na sociedade. Queria lutar com todo empenho pela transformação necessária e é isso que me chamava para a militância.

Pergunta: E quais foram as principais mudanças notadas na sociedade entre agora e na época em que você começou?

Eliana: Na época da ditadura, a defesa dos direitos humanos era mais voltada para os direitos individuais, civis e políticos, que eram, então, as exigências maiores. Aos poucos, a gente foi percebendo que a luta pelos direitos humanos era muito maior. Um passo importante, por exemplo, foi a adoção dos DHESC- direitos econômicos, sociais, culturais e, no Brasil, sempre acrescentamos ambientais.

No momento que antecedeu a ditadura os sindicatos tinham uma participação expressiva na luta por reformas de base e mudanças estruturais. Hoje em dia, não perdemos todas as nossas conquistas, porém, os sindicatos estão mais enfraquecidos. Novos movimentos surgiram com a retomada da democracia e vêm dando contribuições importantes e ressaltando questões de identidade. Nossa autonomia enquanto organizações da sociedade civil está sendo ameaçada. Infelizmente, muitas pessoas não percebem a necessidade de reforçar as lutas para garantir que não haja retorno à ditadura.

Pergunta: Quais são os obstáculos que você enfrentava antes comparados com os de agora? 

Eliana: Naquele tempo, tudo era incerto para os militantes. Porém, o ser humano, por natureza, é impulsionado a seguir adiante: por exemplo, eu atuava na Secretaria de Educação de Sergipe, na capacitação de professores e professoras, eu usava muito os ensinamentos de Paulo Freire, mesmo que fosse proibido. Então eu apresentava a metodologia como método analítico sintético, e deu certo. 

Pergunta: Durante algum momento da sua vida, você já pensou em desistir?

Eliana: Com o aprofundamento da ditadura, principalmente em 1968, ameaças e perseguições se ampliaram e não foi mais possível seguir em Sergipe. Em fevereiro de 1970, fui presa e torturada pela repressão política em São Paulo. Fiquei quase dois anos na prisão, saindo em novembro de 1971. Foi um momento realmente difícil, tinha uma criança de poucos meses, e logo que saí da prisão fui para a França para reencontrá-la. Apesar de ter declaração das Auditorias Militares de que havia cumprido a pena, não consegui renovar meu passaporte e de consequência, fui obrigada a pedir o estatuto de refugiada, ficando na França por 8 anos.

Foram momentos duros, mas nunca pensei em desistir, pois cada experiência me ensinou demais! Por exemplo, na prisão eu aprendi o respeito às diferenças, pois eram várias posições políticas, crenças e costumes convivendo, e todas tinham um mesmo inimigo: a repressão. A unidade entre nós era fundamental e me fez valorizar o ecumenismo.  

Mesmo nos momentos mais complicados e tristes, quando sentia falta da minha filha, do meu marido, eu só pensava em não desistir. Na França, no exílio, comecei com trabalhos simples, depois fui admitida pelo Serviço Civil Internacional, para coordenar o setor de migrantes e refugiados. Foi um momento da minha vida em que conheci a defesa da cultura de origem dos migrantes que viviam naquela época na Europa. Aprendi muito, também, com refugiados do Chile e da Argentina, além de conhecer de perto a solidariedade do povo francês para com a luta da América Latina e com a anistia no Brasil.

Enfim, todas essas experiências no exterior me deram a força de continuar a ter fé, esperança e força, para um dia voltar ao Brasil mais preparada para continuar minha militância. 

Pergunta: Quais são as suas principais influências?

Eliana: Pela minha formação católica, tive grande admiração pela Teologia da Libertação. Como militante, tive grande influência marxista. Mas, posso dizer que o ecumenismo assume uma importância muito grande, guiando minha militância pelos direitos humanos. Sobre as influências gerais, tenho uma admiração enorme por Eduardo Galeano, José Mujica, porque nos transmitem uma visão de simplicidade e nos empurram a não cultivar o ódio. Também tem muitas mulheres que sempre foram de grande referência para mim. Um exemplo é Luiza Bairros: negra, ministra, militante e intelectual.

Pergunta: Como você concilia sua vida particular, familiar e seu trabalho e militância? Você acredita que é possível separar as duas coisas?

Eliana durante a cerimonia do Título de Cidadã Baiana (2017). Foto: MST

Eliana durante a cerimônia do Título de Cidadã Baiana (2017). Foto: MST

Eliana: Já foi mais difícil do que hoje. Ter sido presa com uma criança de meses de vida foi meu primeiro trauma, pois me culpava por expor a vida da minha filha ao risco. Quando meu irmão me disse que ia levá-la para a França, foi um sofrimento enorme. 

Quando trabalhava na Europa, viajava muito e tinha que deixar minha família. Hoje é mais fácil. É claro que a militância ocupa muito tempo, mas acho que a busca conjunta de soluções é muito importante. O fato de poder partilhar com a família questões que nem todas as pessoas do círculo familiar estão acompanhando, é muito confortante, pois para ter uma vida digna e de qualidade, até entre parentes, há que se lutar pelas transformações necessárias.

Quando recebi meu título de cidadã baiana, tive uma surpresa incrível! Durante a cerimônia, mostraram um vídeo dos meus netos contando sobre mim e minha militância.

Pergunta: Diante do cenário atual, que muitas vezes se mostra desanimador, o que te estimula a continuar? 

Eliana: A luta contra as desigualdades sociais é o que mais me estimula a ir para frente. A indignação pelo racismo, pelo genocídio da juventude negra e dos povos indígenas, a devastação sistemática da Amazônia, a violência contra as lideranças rurais e urbanas, o feminicídio crescente, a criminalização dos movimentos e das organizações da sociedade civil. Essas injustiças me incentivam ao compromisso constante. 

 

“Tudo o que ameaça os direitos humanos não me é indiferente; e é a razão da continuidade da luta!”

 

Pergunta: Qual conselho você daria para quem está começando na luta nos movimentos sociais e militância? 

Eliana: É difícil dar conselho. Como dizia Paulo Freire, ‘ninguém só ensina, ninguém só aprende. Ensinamos e aprendemos uns com os outros.’ A juventude precisa ter em mente que a participação não é um momento, pois a luta é contínua. Apesar das conquistas, a luta não para, porque sempre vai ter outras questões pra resolver.

Importante, também, saber que não devemos desanimar se não conseguirmos os avanços esperados; podemos aprender muito com as derrotas.

A solidariedade, o respeito e a ternura. A solidariedade nas relações com companheiros e companheiras, entre as OSC e com a sociedade. O respeito às diferenças e aos valores dos outros. A ternura para combater o clima de ódio e defender nossa sociedade contra a morte. Essas três características são as chaves que cada militante precisa ter quando seu objetivo for a chegada a uma sociedade democrática, justa e transparente. 

Pergunta: Qual é o seu modelo de futuro? 

Eliana:  Eu não tenho um modelo, mas sim um sonho com uma sociedade baseada em relações democráticas, que respeitem todas as dimensões de direitos humanos e em que as diferenças de gênero, de classe, de etnia, de religião, sejam respeitadas. 

Sonho com uma sociedade que tenha justiça na distribuição da riqueza como uma forma de enfrentamento às desigualdades sociais. Uma sociedade em que os direitos da soberania alimentar, da moradia e do trabalho sejam respeitados.

Na minha utopia, esse modelo ou sonho de futuro teria nas relações de solidariedade o seu alicerce.

Pergunta: Quando você começou a se envolver na luta política do MROSC?

Eliana: Quando voltei para o Brasil, eu atuei no Centro de Estudos e Ação Social (CEAS), na Comissão Pastoral da Terra (CPT), até chegar na Coordenadoria Ecumênica de Serviço (CESE), onde trabalhei por 30 anos, iniciando como assessora, para depois me tornar Diretora Executiva, e ainda hoje represento a instituição em alguns espaços do Novo Marco Regulatório das OSC. 

Eliana Rolemberg durante o Seminário Nacional da Plataforma MROSC (2019). Foto: Plataforma MROSC

Em 2010, havia uma forte relação entre a nossa organização, principalmente com a  ABONG, a Cáritas, entre outras.

Entre as pessoas que compunham essas organizações havia um sentimento de compromisso com a democratização das relações entre poder público e sociedade. 

Nós, da CESE, que estávamos muito próximas da cooperação internacional, principalmente ecumênica, fomos vendo essa cooperação se enfraquecer. Muitas organizações solidárias, de vários países, foram saindo do Brasil, que passava a ser visto como um país de renda média. 

Muitas OSC se encontravam em uma situação de risco em termos de sua sustentabilidade. No momento em que os financiamentos diminuíram, percebemos que era necessário exigir que recursos do Governo fossem destinados para manter as organizações responsáveis historicamente pela influência nas políticas públicas e por seu monitoramento.

A sociedade civil sempre mostrou ao Governo sua criatividade diante de grandes questões desafiadoras, a exemplo da convivência com a seca. Porém, a tendência dos governos era de utilizar as nossas organizações como simples prestadoras de serviços. Por outro lado, nós queríamos a possibilidade de relações democráticas quanto ao acesso aos recursos públicos. 

Na composição do Grupo de Trabalho paritário, coordenado pela Secretaria Geral da Presidência da República, encarregado de levar adiante a proposta de um novo marco regulatório e, responsável pela  elaboração da minuta do projeto de lei 13.019, representei o segmento ecumênico inicialmente pelo CLAI- Conselho Latinoamericano de Igrejas e, posteriormente pela CESE- Coordenadoria Ecumênica de Serviço.

Pergunta: Quais livros ou filmes você indica? 

Eliana:

Livros:

  • Amor e Capital – Mary Gabriel
  • Feminismo Popular e lutas anti sistêmicas – Carmen Silva
  • Vale a pena sonhar – Apolonio de Carvalho

Filmes: 

  • O menino do pijama listrado – Mark Herman 
  • Central do Brasil – Walter Salles 
  • Mães paralelas – Pedro Almodóvar 

 

2 Comments

  • Anne Oliveira disse:

    Um belissimo testemunho. Não dá para separar fé e política (não confundir com politicagem).

  • Maria de Lourdes Costa disse:

    Temos em Eliana Rolemberg, mulher exemplar na sua forte e digna luta, a vitória do bem sobre o mal. Tenho um título:amiga de Eliana. Honra e aprendizado.
    .Deus a abençoe hoje e sempre. Lourdinha

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