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A crise sanitária e política que o Brasil enfrenta, a partir da pandemia de Covid-19, afeta diretamente as rotinas de trabalho e atuação das Organizações da Sociedade Civil (OSC) em diversos aspectos.

Após um ano vivendo as consequências provocadas pelo cenário da pandemia, como a necessidade de distanciamento social, a adoção de medidas de proteção e contensão da disseminação do vírus, as OSC seguem em busca de um tratamento jurídico mais justo, especialmente no que diz respeito à realização das assembleias e os procedimentos de registro de atas, que antes eram realizados de forma presencial. Na entrevista, Paula Raccanello Storto, mestre em Direito pela Universidade de São Paulo (USP), sócia da SBSA Advogados e assessora jurídica da Plataforma MROSC, destaca os caminhos jurídicos possíveis neste momento de pandemia.

A partir das restrições sanitárias para atividades presenciais, como tem se dado a realização de assembleias durante a pandemia?

Paula Storto: A realização de assembleias durante a pandemia sofreu diversas mudanças de interpretação sobre de que forma podem ser realizadas. Inicialmente, por não ter havido uma Medida Provisória (MP) que resolvesse este problema para as OSC – a exemplo do que ocorreu com relação as empresas, com a MP 931 de março de 2020 – houve resistência maior por parte dos cartórios em acatar este formato virtual.

Claro que nós já defendíamos esta possibilidade em razão da isonomia de tratamento entre pessoas jurídicas e da excepcionalidade da situação da pandemia, mas na ausência de uma autorização expressa na legislação civil, ou nas normas respectivas Corregedorias Estaduais de Justiça que regulam o funcionamento dos Cartórios de Registro Civil de Pessoa Jurídica, enquanto não foi editada lei específica ainda havia muita insegurança e tratamento diverso, para cada Cartório.

Com a autorização legislativa em junho de 2020, pela Lei nº 14.010, não havia mais dúvida sobre a validade jurídica das assembleias virtuais, mas ainda assim, tratava-se de uma novidade, gerando incertezas com relação aos procedimentos exigidos para operacionalizá-la.

A boa notícia é que o que nós temos visto ao longo desse ano de pandemia é que os cartórios, via de regra, tem sido mais razoáveis nas exigências para os registros das assembleias virtuais.

Paula Raccanello Storto, mestre em Direito pela Universidade de São Paulo (USP), sócia da SBSA Advogados e assessora jurídica da Plataforma MROSC, destaca os caminhos jurídicos possíveis neste momento de pandemia.

O formato virtual se aplica para assembleias eletivas, extraordinárias, de criação e dissolução das OSC também?

Paula Storto: Sim, é possível fazer as assembleias eletivas, de criação e de dissolução de OSC. Já tivemos oportunidade de assessorar estas situações em mais de uma ocasião no último ano, realizando as reuniões de forma virtual e os registros com assinaturas de documentos de forma eletrônica e envio de e-mail confirmando a presença das pessoas, sem problemas.

Com um bom planejamento da realização da assembleia e adequada adaptação dos processos internos de convocação, registro de presenças, deliberação, secretaria e assinatura de documentos, a vida digital das associações e fundações tem se mostrado uma realidade possível.

E o que mudou com o procedimento de registro das atas perante os cartórios?

Paula Storto: O procedimento de registro de atas nos cartórios, de fato, teve muitas mudanças e os entendimentos por parte dos cartórios ainda não estão completamente consolidados. Assim, no atual momento existe a necessidade de a OSC sempre consultar o cartório específico onde tem os seus registros para garantir sucesso no procedimento.

Isso demanda um acompanhamento mais próximo dos procedimentos que vem sendo adotados que, diga-se de passagem, muda muito de um Cartório para o outro.

Vale mencionar que a realização de assembleias virtuais e o registro de documentos na forma exclusivamente eletrônica já era possível antes da pandemia, mas ainda muito pouco usada e, via de regra, exigia-se que o Estatuto Social da OSC autorizasse de forma expressa o procedimento.

Com a previsão legal da validade jurídica das assembleias virtuais, sem a necessidade de previsão obrigatória no Estatuto no período da pandemia, tivemos a popularização do uso do registro das atas de forma virtual através do site RTD Brasil (https://www.rtdbrasil.org.br/) no qual os documentos são submetidos integralmente de forma eletrônica, dispensando por completo a via física.

Neste caso, aceita-se a assinatura eletrônica dos participantes como também a comprovação da participação e deliberação via e-mail, em substituição à lista de presenças, mas exige-se que a assinatura do representante legal seja certificada por Autoridade Certificadora, como é o caso do ICP-Brasil. Este é um ponto importante, aqui não estamos falando de um software utilizado para assinatura de documentos, ou da aplicação de uma reprodução da assinatura da pessoa em um documento, mas de uma assinatura digital que exige um cadastro prévio em entidade certificadora, oficialmente reconhecida.

Mas o procedimento pode também ser feito de forma híbrida, em que a reunião ocorre de forma não presencial, virtual, a lista de presenças é substituída por comprovação de participação via e-mail à organização, mas a ata é assinada apenas pelos dirigentes de forma física, com reconhecimento de firma.

Por fim, nunca é demais lembrar que hoje em dia um bom Estatuto Social de uma OSC deve necessariamente versar sobre este tema, admitindo expressamente, ou mesmo rejeitando o formato de assembleias e reuniões virtuais, se este for o desejo da organização. O atual momento convida as OSC a refletirem sobre os seus processos internos, revisitando seus documentos societários e regimentos para atualizá-los para este novo modo de fazer as reuniões e assembleias. Alinhar a formalidade às práticas reais da OSC é uma coisa importante, que aumenta o nível de conformidade, de compliance, da OSC e a sua segurança institucional. Claro que passada a pandemia, parte dos encontros presenciais voltará a acontecer, mas é inegável que houve ganhos logísticos e redução de custos com a incorporação de uma cultura mais digital de que as OSC podem lançar mão no seu processo de governança e tomada de decisão.

Você mencionou que a lei Nº 14.010/2020 permitia a realização das assembleias de maneira virtual apenas até 31 de dezembro de 2020. Como fica a realização a partir desta data?

Paula Storto: Em razão da pandemia, a Lei 14.010/20, prorrogada pela Lei 14.030/20, autorizou a realização das assembleias das OSC de maneira virtual independentemente de previsão do Estatuto Social, bem como a extensão dos mandatos dos dirigentes, até 31 de dezembro de 2020.

Assim, temos que este prazo legal se esgotou, mas a pandemia continua firme e forte, exigindo que continuemos a evitar aglomerações desnecessárias, o que, em nossa opinião, mais do justifica a manutenção da realização das assembleias de forma virtual.

Apesar disso, o fato é que desde o dia 1 de janeiro de 2021 nós não temos mais uma lei que autorize de forma expressa o processo de realização de assembleias virtuais, o que gera uma certa insegurança jurídica. Mas, como dissemos, os cartórios parecem já ter incorporado essa nova prática e tem sido flexíveis com relação a esta realidade de aceitar o formato virtual de reuniões como válido, independentemente de previsão nos Estatutos Sociais das OSC.

Neste contexto de insegurança e falta de regulamentação, quais iniciativas a Plataforma MROSC tem realizado para garantir maior segurança jurídica na realização das assembleias online?

Paula Storto: Desde o início da pandemia, a Plataforma MROSC atuou junto aos parlamentares, no sentido de que a legislação que estava sendo editada no contexto da pandemia alcançasse também as OSC, a fim de garantir às organizações todos os mesmos benefícios e garantias que foram pensados para as empresas, tanto no que diz respeito às medidas de manutenção dos empregos, oferta de crédito, parcelamento de obrigações fiscais, como também medidas de viabilização da manutenção das atividades e operações à distância.

Este tipo de proposta, para além de ser justa com as organizações da sociedade civil – já que são pessoas jurídicas que merecem ser tratadas, no mínimo, com isonomia com relação a outras pessoas jurídicas – era também essencial para conter o aumento da pobreza e das desigualdades geradas pela pandemia na medida em que as OSC desempenharam relevante papel nesse momento. Mas, infelizmente não foi o que ocorreu.

Especificamente, com relação ao tema das assembleias virtuais, o ideal seria que tivesse sido editada Medida Provisória assegurando a validade da realização destas assembleias e reuniões em formato virtual, bem como a extensão dos mandados dos dirigentes durante o período da pandemia, a fim de que, os Cartórios de Registro Civil de Pessoa Jurídicas não tivessem dúvidas acerca desta possibilidade e regularizassem seus registros.

É uma lástima, mas a MP 931/2020, editada em março de 2020 pelo Governo Federal deixou as OSC de fora. Previu esta possibilidade apenas para as empresas, fazendo com que as organizações ficassem descobertas e que fosse necessário que o Congresso Nacional aprovasse uma lei que estabelecesse este regramento para as OSC, o que aconteceu com a edição da Lei 14.010, em junho de 2020. É o que se podia esperar deste nosso Governo Federal que se notabilizou por criminalizar as OSC e por não articular as ações de combate à pandemia. Aliás, este fenômeno da criminalização das Organizações da Sociedade Civil é um tema estruturante na agenda da Plataforma MROSC, que será objeto de maior aprofundamento neste ano de 2021.

As ações da Plataforma em defesa das OSC nesse contexto contaram com grupo de parlamentares de diferentes partidos e articulação com a Frente Parlamentar em Defesa das OSC.

Vale destacar também que a Plataforma MROSC foi muito atuante em defesa das OSC nesse período de pandemia. Elaborou e divulgou a Cartilha MROSC e COVID – 19: Manual Prático de Apoio às OSC, disponível no site da Plataforma. Um texto bem explicativo que, na prática, orienta as ONG como agir com problemas nas parcerias decorrentes da pandemia. Trabalhamos nesse texto buscando abarcar todas as fases da relação de parceria entre Estado e Organizações da Sociedade Civil que passa pelo planejamento, seleção e celebração, execução, monitoramento e avaliação e prestação de contas. Diagnosticamos que era necessário propor uma norma que pudesse resolver as questões transitórias da situação sui generis da pandemia.

Em conjunto com o presidente da Frente Parlamentar Mista em Defesa das Organizações da Sociedade Civil, deputado Afonso Florence, atuamos na redação do Projeto de Lei nº 4.113/2020 para criar um regime jurídico transitório durante a pandemia, aplicável às parcerias entre Estado e sociedade civil, de modo a orientar os gestores públicos e as organizações sobre ajustes necessários neste novo cenário de restrições e a gerar mais segurança jurídica para as relações de parceria. O site da Plataforma traz uma nota técnica na qual elencamos toda a argumentação jurídica em que nos baseamos para defesa da aprovação deste importante PL, que merece nosso apoio e da sociedade como um todo. Foi realizada ainda com a Frente Parlamentar um ato público pela prestação de serviços sociais na pandemia em setembro de 2020, entre outras tantas iniciativas.

Sobre o tema das assembleias temos também o Projeto de Lei 380/2021. O que ele propõe?

Paula Storto: Como falamos, com relação ao tema que nos interessa aqui, o PL 380/2021 de autoria do deputado federal Paulo Teixeira (PT-SP) prevê a alteração do artigo 48 do Código Civil para estabelecer a validade da realização de forma digital das assembleias gerais das pessoas jurídicas de direito privado, independentemente de previsão nos atos constitutivos. A redação abarca associações, fundações e organizações religiosas, e ainda, os demais tipos de pessoa jurídica. O PL prevê ainda, especificamente, alterações nessa mesma direção para permitir a realização de reuniões e assembleias virtuais de cooperativas, sociedades limitadas e sociedades anônimas. É um bom projeto, sem dúvida. Mas pessoalmente, para ficar tecnicamente mais completo, eu acho que merece um aperfeiçoamento no sentido de incluir no texto também a menção às reuniões e não apenas às assembleias,

Existe ainda um PL interessante em tramitação, que é PL 5.546/2020, de autoria do senador Oriovisto Guimarães (PODE-PR), que também propõe alterar o código civil para permitir que as assembleias sejam virtuais independentemente de previsão estatutária e deixa a possibilidade da entidade vetar em seu Estatuto Social este tipo de assembleia, caso expresse no estatuto que suas deliberações sejam todas em reuniões presenciais. Assim como no caso do PL 380/2021, acho que seria correto incluir a previsão das reuniões para além das assembleias. E ele traz um dispositivo que considero desnecessário, que é o artigo 2º, ele determina que na primeira assembleia da entidade que se realize seja decido o modo como ocorrerão as reuniões, se presenciais ou eletrônicas. Acreditamos que o correto é que se diga que, desde que o Estatuto não proíba, vale assembleia ou reunião eletrônica e presencial nos termos da convocação. É preciso que a lei não interfira na autonomia da organização decidir caso a caso. Ou seja, num ano a assembleia ser virtual, no outro presencial.

Obrigada Paula por todos estes esclarecimentos, que certamente vão orientar as OSC que precisem realizar suas assembleias deliberativas em 2021.

Paula Storto: Eu que agradeço, é um prazer poder integrar a assessoria jurídica da Plataforma MROSC ao lado de tantas organizações que são referência de atuação aguerrida em prol do interesse público, juntamente com minha colega Laís de Figueirêdo Lopes, defendendo uma agenda tão importante para a consolidação da democracia, especialmente neste momento político, em que a defesa da pluralidade se faz tão necessária.

Enquete na Câmara dos Deputados

Participe da enquete disponibilizada na site da Câmara de Deputados sobre o Projeto de Lei 380/2021. A enquete deseja saber qual a sua opinião sobre este Projeto de Lei que é apoiado pelo Plataforma MROSC. Responda a enquete e ajude a fortalecer a incidência pela aprovação desta proposta que deseja alterar as Leis número 5.764, de 16 de dezembro de 1971, 6.404, de 15 de dezembro de 1976, e 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil), para dispor sobre realização de reuniões e assembleias gerais por pessoas jurídicas de direito privado e convocação de assembleias gerais por sociedades cooperativas.

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