Por Angelica Tomassini e Nivea Martins
A ação para o fortalecimento do protagonismo das mulheres, sobretudo nos espaços políticos de gestão social e do direito, é um dos pontos norteadores da Plataforma MROSC. Através de rodas de conversa, encontros estaduais e nacionais voltados para as mulheres, a Plataforma vem debatendo e convidando as mulheres do campo e da cidade a se apropriarem dos espaços e discussões na luta por um novo Marco Regulatório das Organizações da Sociedade Civil.
Para evidenciar as diversas mulheres, suas histórias de luta e militância, envolvidas hoje na Plataforma e/ou nas organizações signatárias, lançamos a campanha Mulheres que Inspiram, uma série de entrevistas para conhecermos essas lideranças que estão em espaços de destaque ou na base e que diariamente lutam por seus direitos.
Mulheres que Inspiram – Sirlene Santos
Neste mês a Campanha ‘Mulheres que Inspiram’ chega em terras quilombolas. Entrevistamos Sirlene Santos, um exemplo de mulher que luta pela valorização da ancestralidade e pelo protagonismo quilombola no Brasil. Assistente Social, pós graduada em Gestão de Pessoas, e sempre buscando atualizar sua prática no setor dos movimentos sociais, Sirlene nasceu e cresceu no mundo do associativismo, passando sua vida entre a cidade e o quilombo, lugar que conseguiu tornar em um campo de batalha pela luta e resistência das mulheres negras.
Pergunta: Como surgiu sua luta por direitos humanos, seu desejo de lutar junto aos movimentos sociais, organizações?
Sirlene: Hoje em dia moro e trabalho na sede do município Morro de Chapéu, que fica a 56 km do quilombo Queimada Nova, onde eu nasci. Por ser do quilombo, posso afirmar que nasci dentro de associações e movimentos sociais. Atualmente, lá no quilombo tem duas associações: a Associação Mulheres Quilombolas em Ação Dandara dos Palmares, a qual sou Presidente, e a Associação dos Produtores Remanescentes de Quilombo de Queimada Nova, que nasceu em 1985, quando eu tinha sete anos. Minha mãe fez parte da primeira formação dessa associação e eu cresci dentro dela.
Aos onze anos sai do quilombo para estudar a quinta série, na sede do município. Não foi fácil, pois eu era menina do sertão, da zona rural, não conhecia energia elétrica, a televisão. Não era meu habitat, e cada vez que podia voltava para o quilombo.
Concluí o ensino médio em 1996, e no ano seguinte, no quilombo foi fundado um colégio com o nome do meu avô e eu, com 18 anos, entrei como professora de matemática. Imaginem o orgulho da minha família por eu ser professora, a primeira pessoa formada da família. Foi nesse momento que voltei ao quilombo por ser professora, que nasceu em mim o desejo de fazer algo pela minha comunidade, e que iniciou minha caminhada nos movimentos sociais.
Pergunta: Quais foram as principais mudanças notadas na sociedade entre agora e na época em que você começou ?
Sirlene: Mudou muito. Nossa associação nasceu em 1985, porém foi só em 2008 que fomos auto reconhecidos como comunidade remanescente de quilombo. Tivemos muito apoio e orientações do nosso irmão quilombola Luciano Brito, do quilombo de Velame, vizinho ao nosso, reconhecido em 2005.
Naquela época não tínhamos acesso a informação. A energia elétrica só chegou em ‘97. A internet chegou muito antes na cidade mas no quilombo e nas comunidades foi mais difícil. No nosso quilombo chegou à internet só no ano passado depois de muita luta com as empresas de provedores de internet. A chegada da internet foi um impacto muito grande, tivemos acesso a informações, aos editais, a estar nos espaços de luta.
E também mudou o acesso à educação, às políticas públicas, às universidades. Hoje em dia as pessoas são mais politizadas. Claro, que na zona rural os limites ainda são muito mais do que na cidade. Mas o acesso ao mundo digital auxiliou a comunidade a compreender os desafios da sociedade atual, e as lutas combatidas pelo povo mais vulnerável.
Pergunta: Quais são os obstáculos que você enfrentava antes comparados com os de agora? Durante algum momento da sua vida, você já pensou em desistir?
Sirlene: Muitas foram as vezes que pensamos em desistir, porque trabalhar no coletivo é complicado. Às vezes você coloca todas suas expectativas num projeto e os resultados não chegam, porque nem todo o mundo está na mesma vibe no mesmo momento. Trabalhar no coletivo é ser flexível, trabalhar no tempo do outro e entender que sua expectativa não é a do outro. Cada militante tem seu tempo e suas bandeiras.
Outro desafio é que nem todo mundo entende e se reconhece como quilombola, só pelo fato de ser negro. Ainda hoje muita gente não sabe ou reconhece as dificuldades de ser mulher e negra. Já tivemos um caso de uma representante pública não ter esses entendimentos e foi uma grande dificuldade e frustração. Esses obstáculos são desanimadores, sobretudo quando percebemos que o pessoal do quilombo não se levanta, não defende nossas origens e nossa ancestralidade. Infelizmente, a luta é grande e o exército é muito pequeno ainda.
Pergunta: Quais são as suas principais influências?
Sirlene: Minha mãe e minha vó. Minha mãe é agente de saúde, começou como professora leiga e está se aposentando como funcionária pública. Ela me teve muito nova, com 16 anos, não deu certo com meu pai e voltou pra casa dos meus avós. Quando tinha um ano e oito meses meu pai faleceu. Aos 19 anos minha mãe se casou novamente, então deixou de estudar, mas apesar de não concluir os estudos, ela tinha muito conhecimento que lhe permitiu tornar-se professora e alfabetizar muitas crianças do quilombo.
Minha mãe é essa mulher de movimento, ela cuida da comunidade, liga pras famílias para aplicar vacinas, mede pressão etc. Tanto que mesmo com 60 anos ela ainda quer ter o mesmo pique e às vezes até não respeita suas limitações físicas. Minha avó também é uma grande influência para mim. Ela é a conselheira popular do quilombo e resolve os conflitos da comunidade. Teve 21 filhos, e é uma mulher muito sábia. No campo da militância, Vilma Reis aqui na Bahia também é uma grande referência pra mim, ela tem uma força que me arrepia cada vez que ouço suas palavras. Mulher de luta, preta e que luta pelas minorias.
Pergunta: Como você concilia sua vida particular, familiar e seu trabalho e militância? Você acredita que é possível separar as duas coisas?
Sirlene: Eu tenho uma filha de 6 anos e um rapaz de 16 anos. Não dá pra dividir as duas coisas, e é bem complicado conciliar. Esse cuidar de gente, cuidar da comunidade não é fácil e não tem hora, não tem fim de semana e nem sempre a família entende isso. Além disso, sou funcionária pública municipal, trabalho o dia todo fora de casa.
Tenho ajuda do meu companheiro, ele é homem de zona urbana, e não tem vivências e interesse nessas questões da zona rural, eu que trouxe ele para essa realidade. Mas mesmo assim, é muito companheiro e segura muito a barra aqui em casa.
A gente já entendeu que não dá pra largar a militância e nem a família, então quando estou muito envolvida na militância, sou chamada pra me dedicar a família também e aí vamos tentando conciliar. Eu não consigo imaginar minha vida sem a militância, amo estar no meio de associação, das mulheres, no quilombo… e ao mesmo tempo amo minha família, e amo ver os meus filhos seguindo esse mesmo caminho de luta contras as injustiças.
Pergunta: Diante do cenário atual, que muitas vezes se mostra desanimador, o que te estimula a continuar?
Sirlene: O que me incentiva é mudar esse cenário, porque atualmente para pobre, preto, favelado ou periférico é impossível sobreviver. Então saber que podemos mudar, sobretudo no cenário político nacional é o que me influencia a continuar na luta por um futuro mais próspero.
Pergunta: Qual conselho você daria para quem está começando na luta nos movimentos sociais e militância?
Sirlene: Se aquilombar. Não andar sozinho, procurar seus pares. Sozinhos não conseguimos nada. Definir sua pauta, e mergulhar nela. Ler e saber tudo sobre ela, estudar, ouvir quem já está na caminhada há muito tempo e pensar o que nós podemos fazer de diferente, o que podemos acrescentar para que a luta possa prosseguir com sucesso.
Pergunta: Qual é o seu modelo de futuro?
Sirlene: Meu modelo de futuro é mudar nossas representações políticas. É um modelo onde as mulheres pretas, da luta, nos representam. É um mundo onde as leis são feitas por nós. Quem está do outro lado da mesa não conhece a roça, as favelas, as periferias, não sabe o que é o sofrimento, a fome e a humilhação. Como podem os privilegiados criarem leis que deem certo para quem vive a discriminação todos os dias? Sonho com a comunidade negra nos espaços de poder criando leis que garantam uma vida digna ao povo que vive à margem da sociedade.
Pergunta: Quando você começou a se envolver na luta política do MROSC?
Sirlene: Conheci a lei 13.019/2014 em 2017, quando ganhamos um edital da Secretaria Política das Mulheres da Bahia. Aí fomos para Salvador para ter capacitação sobre o Marco Regulatório das Organizações da Sociedade Civil. Naquela época eu era Secretária do Conselho Municipal de Desenvolvimento Sustentável, e fomos beneficiadas com outra capacitação da EduCom no Seabra, BA, com a responsabilidade de repassar as noções aprendidas para os outros conselheiros.
Durante a pandemia conheci a Plataforma MROSC através do edital emergencial do qual a Associação dos Produtores Remanescentes de Quilombo foi beneficiária e tornou-se signatária da plataforma. Atualmente, a Associação Mulheres em Ação Dandara dos Palmares, da qual sou Presidente, também está com um projeto aberto financiado pelo Fundo OSC.
Pergunta: Fale um pouco da sua organização e como ter mais informações para quem quiser acompanhar.
Sirlene: A Dandara dos Palmares nasceu em 2018, através do coletivo Mulheres Quilombolas em Ação de Morro do Chapéu, na Chapada Diamantina, Bahia. Fazíamos algumas ações sociais para beneficiar a comunidade. No começo, não tínhamos CNPJ, mas em 2019, através da ajuda da Associação dos Produtores Remanescentes de Quilombo de Queimada Nova conseguimos ganhar o edital Década Afrodescente da Sepromi, com o projeto Sabores de Quilombo, com o objetivo de resgate da culinária quilombola.
E daí, nasceu a Associação Mulheres Quilombolas em Ação Dandara dos Palmares, e através do Fundo ELAS+ conseguimos prosseguir com o projeto Sabores do Quilombo. Construímos nossa sede com uma cozinha, uma lanchonete e uma brinquedoteca, já que o coletivo começou a se esvaziar, pois estávamos em conflito com companheiros que usavam o fato das crianças não terem onde ficar, para tentar frear a independência das mulheres.
Hoje em dia a gente faz formações e ações para todo o quilombo, porém nosso público alvo são as mulheres e as crianças. E também vendemos os biscoitos e os bolos que as mulheres preparam nas feiras de agricultura familiar, na comunidade e no dia de sábado abrimos a lanchonete que fica na sede. Com o projeto Sabores de Quilombo, ganhamos o Prêmio Impacto por Todas da ONU 2022, e seguimos com os editais tentando agregar mais mulheres. Depois do projeto, tivemos exemplos concretos de mudança de postura, de elevação da autoestima na vida das mulheres ligadas diretamente às atividades da Associação das Dandaras.
Perguntas: Quais livros ou filmes você indica? (Indique 2)
Sirlene: Livros:
Torto Arado – Itamar Vieira Junior
Quem tem medo do feminismo negro – Djalma Ribeiro
Pequeno manual anti racista – Djalma Ribeiro
Interseccionalidade – Carla Akotirene, da Coleção Feminismo Plurais
Filme:
A vida e a história de Madam C.J Walker – Série de Netflix
Selma, Uma luta pela igualdade – Ava DuVernay
A procura da felicidade – Gabriele Muccino
Para quem quiser conhecer mais a Associações Dandara dos Palmares e a Associação dos Produtores Remanescentes de Quilombo, acesse as suas redes sociais:
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