Por Angelica Tomassini e Nivea Martins
Presidente da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (ANTRA), militante e ativista, Keila Simpson representa um dos principais nomes da luta LGBTQIA+ do Brasil. Mulher negra, prostituta e transexual, Keila é pioneira no combate ao HIV e a cada dia luta para todas as as pessoas trans e travestis que enfrentam o preconceito e as discriminações na família, na escola, nas ruas e nos serviços públicos, além da violência que torna o Brasil o país campeão mundial de assassinatos da comunidade LGBTQIA+.
- Como surgiu sua luta por direitos humanos, seu desejo de lutar junto aos movimentos sociais, organizações?
Keila: Nasci no Maranhão e passei minha infância num interior chamado Pedreiras. Aos 14 anos já tinha um entendimento da minha condição predisposta biologicamente, e já sabia que essa condição poderia trazer muitos problemas, especialmente para minha família. Com o desejo de ganhar o mundo, decidi mudar com uma amiga, Bruna, para Teresina, e ficamos como hóspedes na casa da minha prima.
Já quando cheguei percebi o desconforto dessa minha prima, então saí de casa e fui para o centro da capital. Um lugar agradável para mim, logo me senti à vontade na praça Pedro II, lugar onde havia pessoas gays, lésbicas e travestis, alguns dos quais possuíam corpos feminilizados, pois naquela época já era comum consumir hormônios, e foi lá, mais tarde, que comecei a pegá-los também.
Nesse momento também tive os primeiros contatos com a prostituição. A primeira vez em que aceitei dinheiro após um relacionamento sexual foi nos anos 80: depois de ter passado uma noite com um homem, ele me deu um dinheiro, que correspondia à quantia que eu ganhava num mês como empregada de limpeza. Ainda lembro bem daquele momento no qual a prostituição tornou-se minha profissão.
Prostituir-se não é algo assim natural e fácil, no começo não dá muito dinheiro, e para ganhar mais passei um período da minha estadia em Teresina sendo doméstica durante o dia e prostituta pela noite, até que chegaram em mim notícias sobre Recife: a descreviam como o lar de muitas travestis, e foi com essa curiosidade que minha amiga e eu decidimos viajar para Pernambuco.
Recife era de verdade a casa de muitas travestis: nunca esquecerei de quando vi uma esquina com aproximadamente 40 travestis. Bruna e eu ficamos encantadas, nunca havíamos visto tantas prostitutas travestis num só lugar! Nossa surpresa terminou logo, quando uma delas veio até nós, nos intimidando e exigindo explicações sobre nossa presença naquele lugar.
Passados alguns anos, comecei a me sentir em perigo, pois naqueles anos em Recife havia um homem que matou várias travestis. Para escapar da ameaça desse assassino, Bruna e eu decidimos viajar para a capital baiana.
Salvador revelou-se logo um lugar interessante: um grupo de travestis nos acolheu com abraços e orientações sobre como e onde desempenhar a prostituição, que já representava nossa única fonte de ganho. Em Salvador começou minha caminhada no ativismo trans e travesti, mundo do qual nunca saí.
Em 1991, no auge do HIV, foi que conheci, numa esquina, Luiz Mott, fundador e até então Presidente do Grupo Gay da Bahia. Ele estava à procura de alguém que pudesse contribuir na distribuição de preservativos, e foi feliz de aceitar esse trabalho voluntário que ajudava a cuidar da saúde de muitas das minhas amigas.
Nos anos 90, entre as prostitutas, já havia um entendimento de como salvar-se do HIV, porém ainda não sabíamos como lidar com outra epidemia que nos maltratava: a violência policial. Os corpos policiais eram muito agressivos conosco, por isso começamos a perceber a necessidade de um discurso com os órgãos públicos. Foi com essa exigência que, em 1995, criamos a Associação de Travestis de Salvador.
Em 1996, no Rio de Janeiro participei do III Encontro de Travestis e Liberados (qualquer pessoa que não era travesti, mas era simpatizante) que atuavam na prevenção do HIV. Na prática eu já militava há muitos anos, porém na teoria estava despreparada: me sentia pouco formada comparada aos militantes presentes, os quais discutiam sobre as estratégias de combate à discriminação e a falta de direitos vivenciadas pela nossa comunidade.
Um ano depois voltei ao mesmo evento em São Paulo, muito mais preparada do que no ano anterior. Propus ideias para organizar uma oficina sobre silicone líquido e os presentes aprovaram minha proposta. Daí comecei a me destacar nos movimentos sociais, e nunca deixei minha profissão de prostituta.
A terceira edição do encontro voltei para o Rio de Janeiro e foi nesse ano que surgiu a necessidade de se criar uma rede que reunisse e encaminhasse as demandas, inquietações e propostas da população de travestis e transexuais. Foi assim que nasceu a Associação Nacional de Travestis e Transexuais, registrada como pessoa jurídica em 2002, da qual atualmente sou Presidenta.
- Quais foram as principais mudanças notadas na sociedade entre agora e na época em que você começou?
Keila: Hoje temos uma compreensão melhor das diversidades transgêneras, pois pouco a pouco, a mídia trouxe esse debate na vida das pessoas. No passado, esse processo era quase impossível, porque éramos invisíveis aos olhos da sociedade, e ainda hoje, quem nos deixa e exige que vivamos nessa condição de discriminação constante, são os mesmos homens que utilizam nosso corpo para os seus prazeres sexuais.
Nos últimos anos conseguimos ganhar espaço na sociedade, há travestis formadas, travestis que têm profissões e cargos até no parlamento. Hoje, as travestis pretendem que seus direitos sejam reconhecidos e respeitados, no passado isso não era óbvio. Tenho certeza de que as eleições de 2022 trarão mais travestis no parlamento e na política brasileira, pois não iremos voltar atrás, só para frente. Voltaremos na margem só para buscar aquelas que ainda estão lá.
- Como a pandemia lhe afetou?
Keila: Nós travestis já vivíamos numa situação de afastamento, pois sempre fomos isoladas, mas a pandemia veio de uma forma tão violenta que foi de uma forma inimaginável. Muitas travestis trabalham nas ruas, e foram as primeiras a serem atingidas pela perda de emprego, sendo obrigadas a voltar às casas das famílias, criando vários problemas. Outras foram morar nas ruas por causa da impossibilidade de pagar o aluguel.
A ANTRA realizou campanhas de arrecadação de alimentos, mas foram ações paliativas e foi muito adoecedor ver as pessoas pedindo comida e não ter como ajudar. Eu mesma me sinto uma pessoa privilegiada, pois durante a pandemia eu tinha comida e um teto.
- Quais são as suas principais influências?
Keila: Para mim, influenciador é qualquer pessoa que brigue e lute por políticas públicas, que auxilie os vulneráveis com comida e solidariedade. Qualquer religioso que ame e defenda todos os cidadãos sem pensar em suas orientações sexuais.
- Como você concilia sua vida particular, familiar e seu trabalho e militância? Você acredita que é possível separar as duas coisas?
Keila: Conciliar eu consigo, mas é um pouco difícil. Hoje em dia estamos em processo de mudança da presidência da ANTRA, e já andava pensando no meu descanso, até que me foi proposto a candidatura à Diretoria da Associação Brasileira de Organizações Não Governamentais (ABONG). Aceitei, sem ter noção da quantidade de responsabilidades e incumbências desse cargo, o qual tornou mais desafiador conciliar minha vida pessoal. Porém tenho o melhor dos incentivos, que é o amor pelo meu trabalho e, mesmo que consuma muito de mim, e que muitas vezes seja imprevisível, jamais deixarei minha militância morrer.
- Diante do cenário atual, que muitas vezes se mostra desanimador, o que te estimula a continuar?
Keila: Nunca me desanimei, nunca pensei em desistir e se pudesse reviver tudo o que passei, reviveria do começo. Sou ciente que se eu renunciar, a luta continuará com uma guerreira a menos e isso não é possível para mim e minhas companheiras. Na hora que for me afastar, quero que seja pouco a pouco, formando novas lideranças à frente.
- Qual conselho você daria para quem está começando na luta nos movimentos sociais e militância?
Keila: Ouvir mais e falar menos. As novas gerações precisam escutar e reconhecer que antes de nós vieram outras pessoas que fizeram a diferença. Só podemos desenhar o futuro quando reconhecemos o passado.
- Qual é o seu modelo de futuro?
Keila: Para mim não existe um modelo ideal, mas sim um plano adequado. Gostaria que a sociedade aceitasse minha comunidade, que as escolas fossem mais inclusivas, que a gente não fosse barrada em lugar nenhum e que não tivéssemos que explicar cada dia quem somos e porque somos assim.
- Quais livros ou filmes você indica? (Indique 2)
Filmes:
- A garota dinamarquesa – Tom Hooper
- Um atentado violento ao pudor
Livros
- O casulo de Dandara – Vitória Holanda
- TRANsformação – Cartola Editora