Por Angelica Tomassini e Nivea Martins
A pastora Romi Bencke, Secretária-Geral do Conselho Nacional de Igrejas Cristãs do Brasil – CONIC, é a primeira mulher a assumir esse cargo. Sua trajetória e seu serviço pastoral culminam nos valores da promoção do diálogo ecumênico, inter-religioso e a defesa dos direitos humanos, independentemente das crenças religiosas, do gênero e raça. Nascida no Rio Grande do Sul (RS), mora em Brasília há 17 anos, a Pastora Romi é um exemplo de trabalho de ação social, para uma maior compreensão e aceitação das igrejas às diversidades que compõem a sociedade moderna.
- Como surgiu sua luta por direitos humanos, seu desejo de lutar junto aos movimentos sociais, organizações?
Pastora Romi: Na década dos anos oitenta, quando o Movimento Sem Terra (MST), ainda estava se organizando, foi realizada uma ação de intercâmbio com palestra e uma caminhada com pequenos agricultores e agricultoras, os quais nos fizeram enxergar a realidade da luta pela terra que as famílias camponesas estavam vivenciando. Naquela época eu estudava no internato em um município chamado Ivoti, no Rio Grande do Sul, e esse evento foi marcante para a minha militância.
Outra experiência que marcou minha caminhada aconteceu durante os estudos de Teologia na Escola Superior de Teologia, em São Leopoldo, RS. Eram os anos que o HIV estava surgindo, e com alguns companheiros e companheiras criamos um grupo de apoio às pessoas soropositivas da cidade. Nós recebemos capacitação pelo GAPA (Grupo de Apoio a Prevenção de Aids) e iniciamos um trabalho o qual culminou na criação da Organização Apoio, Solidariedade e Prevenção à Aids (ASPA).
- Quais foram as principais mudanças notadas na sociedade entre agora e na época em que você começou?
Pastora Romi: O que eu vejo muito, é que naquela época não tinha tanta formalização e profissionalização das organizações da sociedade civil. Eu entendo que hoje é uma necessidade, por exemplo para concorrer aos editais, acessar recursos, garantir a transparência, porém o comprometimento com a causa pela qual estamos atuando deveria vir antes. Eu ainda sou da época que o comprometimento com a causa vem antes dos processos burocráticos que hoje em dia são necessários. Precisamos ter um equilíbrio maior entre o envolvimento com os direitos humanos e ambientais e as dimensões institucionais e burocráticas das organizações.
- Quais os obstáculos você vem enfrentando nessa pandemia?
Pastora Romi: O principal desafio foi se manter em pé, principalmente psicologicamente , para enfrentar uma pandemia global tão forte. Em segundo lugar, o desafio foi sobreviver fisicamente. Acho que vamos demorar anos para conseguir elaborar a experiência da pandemia, dos confinamentos, do negacionismo e outras questões que a pandemia trouxe na nossa sociedade.
Dentro do meu trabalho, o que mais nos mobilizou foi pensar como lidar com o luto gerado pela pandemia. Primeiro pelas quase 700 mil mortes, onde as pessoas não puderam nem se despedir dos seus entes queridos, realizando os rituais necessários para passar pelo processo do luto. Pensando nisso, com outras organizações e movimentos, criamos a ação “Respira Brasil”. Durante a pandemia organizamos atos em memórias das vítimas e apoiamos as pessoas enlutadas, com o objetivo que as pessoas pudessem expressar o seu luto conversando com pessoas da área religiosa e da saúde psicológica.
Outra questão foi também tentar manter a organização aberta, um desafio que temos até hoje, por questões econômicas, religiosas e por outras questões que nosso país está enfrentando.
- Quais são as suas principais influências? Pessoas que te inspiram.
Pastora Romi: sendo da área religiosa, e mais especificamente, sendo pastora, às vezes posso ser vista com olhar acusatório, já que não existem muitas religiosas que colocam o ministério sobre a luta dos direitos humanos. Eu faço parte de um coletivo de pastoras e mulheres religiosas que, antes da instituição, colocam o seu ministério a serviço dos direitos humanos. Estas pessoas me inspiram. São mulheres católicas e evangélicas, do candomblé e de outras vertentes religiosas. Elas estão permanentemente afirmando e valorizando uma das dimensões que mais caracterizam o Brasil: a diversidade religiosa em todas suas expressões, por exemplo ao respeito às mulheres, aos terreiros, aos povos indígenas, etc.
Nos confrontamos com o modelo totalitário e autoritário que tem uma forte aliança com uma expressão extremista do cristianismo, e a gente se levanta contra isso, afirmando o valor da diversidade, o respeito de todas as expressões religiosas e a autonomia das mulheres. Por mim essas questões são inegociáveis, e não me interessa o poder da pessoa que queira interferir com esses direitos, eu vou ficar sempre firme e vou dizer o que acho que precisa ser dito. Já recebi várias ameaças, porém nenhuma destas foram capazes de me fazer abrir mão do que eu defendo e valorizo.
- Quais são suas outras lutas? Para além da sua organização.
Pastora Romi: Bom, para mim, todas as bandeiras relacionadas aos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres e meninas, os quais geralmente são reduzidos simplesmente aos do aborto legal e seguro, são fundamentais para o bem-estar da nossa sociedade. Digo que são reduzidos, porque os direitos sexuais vão muito além do aborto legal, por exemplo com o acesso das mulheres ao preventivo anual e da educação sexual das meninas.
Nas igrejas é extremamente difícil poder falar sobre direito das mulheres: o máximo que conseguimos é falar sobre violência contra as mulheres e feminicídio, mas sabemos que não é só isso. O papel que ao longo dos séculos as igrejas deram a nós mulheres não nos pertence. Precisamos lutar sobre esse imaginário de que a mulher é apenas reprodutiva, apenas cuidadora, pois nem todas as mulheres têm essas características. Hoje em dia as igrejas têm um controle sobre nossas vidas, querendo domesticar as mulheres. Nunca vou deixar a militância em favor dos direitos reprodutivos, pois negá-los deixa marcas físicas e psicológicas extremamente difíceis de aliviar.
- Como você concilia sua vida particular, familiar e seu trabalho e militância? Você acredita que é possível separar as duas coisas?
Pastora Romi: Não é fácil, quando falo minhas opiniões pessoais, eu já sei que terei questionamentos. Mas eu sei que, maior que a instituição religiosa, é a minha fé em Jesus Cristo que dá-me a liberdade de falar e me posicionar.
E é bom destacar que eu sou de tradição luterana, e a teologia de Martinho Lutero é elaborada a partir do batismo, professando que o ritual torna todas as pessoas iguais. Então, na perspectiva teológica o batismo rompe com a hierarquia sobre homens e mulheres. Na perspectiva prática a hierarquia continua, mas não por mim, pois eu sou batizada, formada e ordenada igual aos meus colegas homens, então tenho os mesmos direitos religiosos do que eles. Somos iguais. Passamos pelos mesmos caminhos, as mesmas provas. Então, por que minha voz e autoridade religiosa vale menos do que a deles? Sei que sou taxada, assim como em todos os espaços que têm mulheres em destaque, mas isso não me abala.
- Qual conselho você daria para quem está começando na luta, nos movimentos sociais e militância?
Pastora Romi: O principal conselho é estudar. É preciso compreender as contradições e se politizar. Saber os aspectos sociológicos e históricos é fundamental para poder entender e refletir sobre as questões que estamos enfrentando. Precisamos nos engajar, por exemplo, através de uma militância voluntária, porém o estudo individual ou, ainda melhor, coletivo é necessário para avançar na luta, pois esse enfrentamento precisa muito mais que a boa vontade.
- Diante do cenário atual, que muitas vezes se mostra desanimador, o que te estimula a continuar?
Pastora Romi: Quando olhamos para a situação brasileira, vemos uma realidade historicamente estruturada na desigualdade social, baseada na hegemonia racial branca, a hegemonia religiosa cristã, a elite agrária e militarização, etc. Então, quando olhamos para esse contexto, como podemos ficar apáticos? Não dá, não tem como parar.
Por exemplo, quando eu mudei do Rio Grande do Sul para Brasília demorei seis meses para me desvincular dos movimentos onde atuava. Naquela época, meu marido passou em um concurso para um emprego no Distrito Federal, porém para mim não foi fácil deixar meus espaços e correr para a capital. Quando cheguei não conhecia ninguém, não tinha ideia dos movimentos que atuavam na cidade e não conhecia os espaços de luta. Brasília não é uma cidade fácil para se identificar sem conhecer ninguém.
A militância é algo fundamental pra minha vida, mesmo em situações. Nunca deixaria de acreditar e atuar para o bem viver das pessoas.
- Qual é o seu modelo de futuro?
Pastora Romi: Primeiro que as mulheres possam ser como elas querem ser. Uma sociedade justa para todas as pessoas, sem a disparidade econômica e que cada um possa viver com dignidade. E também, sonho com uma sociedade ecologicamente justa, sem os inúmeros agrotóxicos que nos intoxicam pouco a pouco.
- Fale um pouco da sua organização e como ter mais informações para quem quiser acompanhar.
Pastora Romi: A minha organização é o CONIC (Conselho Nacional das Igrejas Cristãs do Brasil), formada por 4 igrejas; Igreja Católica Romana representada pela CNBB, Igreja Episcopal Anglicana do Brasil (IEAB), Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB) e Igreja Presbiteriana Unida (IPU) e Aliança de Batistas do Brasil (ABB). Além das igrejas, tem os membros fraternos que são a CESE, a Fundação Luterana de Diaconia, o Centro Ecumenico de Estudos Bíblicos,bKOINONIA – presença ecumênica e serviço, o PROFEC, etc. E também temos as 12 regionais ecumênicas, as quais são grupos que se organizam nas diferentes regiões do Brasil para a promoção do diálogo e o convívio entre igrejas e religiões.
O CONIC tem como principal missão fortalecer o testemunho ecumênico das Igrejas-membro, fomentar o diálogo inter-religioso e promover a interlocução com organizações da sociedade civil e governo para a incidência pública em favor de políticas que promovam a justiça e a paz. Essa última área nos permite ter uma voz e um posicionamento sobre temas que afligem a convivência entre religiões, por exemplo o extremismo religioso. E essa incidência é pública, mas está muito dentro das igrejas, pois o fundamentalismo também aparece nas igrejas com compromisso ecumênico.
O CONIC existe há 40 anos e é bem conhecido: eu já participava do CONIC como militante no Movimento Ecumênico, o qual surgiu logo depois da Segunda Guerra Mundial, como uma resposta das igrejas as experiências nazista e fascista. Foi esse Movimento Ecumênico que criou, junto com as Nações Unidas, o Conselho Mundial das Igrejas, muito vinculado com a cultura de paz.
Site :www.conic.org
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Livros:
A queda do Céu – Davi Kopenawa
Defeito de cor – Ana Maria Gonçalves
Filmes: Morango e Chocolate – Tomás Gutiérrez Alea, Juan Carlos Tabío